Embora a violência contra pessoas LGBT+ em ambientes online preceda o período eleitoral marcado pela ascensão da extrema direita no Brasil, percepção da pesquisa  Violência contra LGBTs+ no contexto eleitoral e pós eleitoral” é de maior intensidade desses ataques a partir do segundo semestre de 2018

Por Vitória Régia da Silva*

“Aberração, quando Bolsonaro ganhar a eleição você vai morrer”, “Agora podemos matar viado”, “Tem buceta é mulher” e “Vai ver o que faremos com direitos humanos” foram frases que Xande** recebeu de desconhecidos nas redes sociais ao manifestar sua posição política durante o período eleitoral. Homem trans de 46 anos e ativista do movimento LGBT+, ele já estava acostumado a lidar com agressões e violência, mas não de maneira tão intensa e um curto tempo como foram nas eleições de 2018.

Como mostra a pesquisa “Violência contra LGBTs+ no contexto eleitoral e pós eleitoral”, produzida pela Gênero e Número,  ele faz parte dos 36% dos LGBTs entrevistados que relatam ter sofrido perseguição, ameaça ou agressões nas redes sociais pela orientação sexual ou identidade de gênero durante o período eleitoral e pós eleitoral.

“O que acompanhamos foi uma banalização do discursos de ódio, dos ataques e discriminação nesse contexto como defesa de uma pretensa liberdade de expressão e também revestidas da justificativa de opinião”, analisa Rodrigo Nejm, psicólogo, pesquisador e diretor de educação da SaferNet Brasil à Gênero e Número.

A SaferNet, é a ONG que opera a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos com o suporte da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Além disso, a organização oferece um serviço de orientação sobre crimes e violações de direitos humanos na internet, de forma anônima e sigilosa

Nos últimos 12 anos, a organização recebeu mais de 2 milhões de denúncias de discurso de ódio nas redes contra LGBT+, mulheres, pessoas negras e outros grupos. A  série histórica divulgada, que traz dados coletados entre 2006 e 2017, mostra que denúncias de homofobia online totalizaram 134.832 casos nesse período.

Apesar de a discriminação e o preconceitos contra a população LGBT+ não ser criminalizada no país, a partir de denúncias feitas na plataforma da SaferNet, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal investigam os casos e podem pedir a remoção dos conteúdos postados nas plataformas. Também é possível denunciar o conteúdo violento nas próprias redes sociais, mas nesse caso a gestão da denúncia será operado pelas próprias plataformas – Facebook, Youtube, Twitter etc – que têm políticas próprias, mesmo que respondam à legislação básica vigente sobre o assunto.

O Pacto Nacional de Enfrentamento às Violações de Direitos Humanos na Internet – o Humaniza Redes –, lançado pelo Governo Federal em 2015, também é uma ferramenta que busca orientar e ajudar vítimas de ofensas e crimes na internet e tem o objetivo de encaminhar ao Judiciário denúncias dos cidadãos e cidadãs, além de promover campanhas de prevenção de crimes .

“A gente vê na internet o reflexo de contradições e polaridades que vemos na sociedade” |Foto: Ricardo Matsukawa/SaferNet

Nejm destaca ainda os limites da liberdade de expressão na internet. Ele explica que em geral existe uma  dificuldade de compreensão sobre a liberdade de expressão não ser ilimitada. “A partir do momento que se agride, discrimina ou se ataca determinado grupo de pessoas isso deixa de ser opinião e passa a ser uma violência”.  Apesar de não existir nenhuma legislação específica de criminalização ou combate ao discurso de ódio nas redes, em 2018, foi aprovada a lei 13.642/2018, conhecida como Lei Lola, em referência à blogueira e ativista feminista Lola Aronovich, que atribui a Polícia Federal a investigação da difusão de conteúdo misógino na internet.

A “oficialização” do discurso de ódio em 2018

Entre as pessoas que sofreram violência, quando se analisa, as identidades da sigla LGBT+, as pessoas pansexuais e bissexuais, segundo a pesquisa, foram as que mais relataram ter sofrido perseguição ou agressões nas redes sociais, 48% e 41%, respectivamente. Em seguida, lésbicas (37%), gays (31%) e heterossexuais (14%) – sendo este último referente às pessoas transgêneras que são heterossexuais. E quando se observa a raça dos que sofreram perseguição ou ameaça nas redes, a maioria dos relatos foram de pessoas negras, 53%. 

Desde as eleições de 2014, há um aumento do discurso de ódio no período eleitoral devido a polarização política, como já demonstrou a Safernet, mas nas eleições de 2018 foi observado um pico de denúncias de discurso de ódio. Candidatos oficializaram essa postura de violência e as eleições foram marcadas por uma exaltação da violência e da intolerância como proposta política.

Durante as eleições de 2018, a iniciativa TRETAqui, canal desenvolvido com o objetivo de facilitar a denúncia de discurso de ódio utilizado por candidaturas ou por cidadãos que atacavam candidaturas, teve 564 denúncias cadastradas. A iniciativa foi resultado de  parceria estabelecida entre nove entidades da sociedade civil brasileira: Coding Rights, Beta, Vote LGBT, #MeRepresenta, Fundação Cidadania Inteligente, Rede Feminista de Juristas, Gênero e Número, Umunna e InternetLab. Os dados coletados na plataforma estão citados no relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre as eleições brasileiras.

Banalização da violência e discurso de ódio nas redes sociais

San** é uma jovem negra e bissexual que nutria uma relação próxima e boa com seus familiares até o período eleitoral. Seu tio e sua esposa, que sempre a acolheram, mudaram o comportamento durante as eleições de 2018. “Quando passaram a apoiar a candidatura do [Jair] Bolsonaro eles se tornaram muito mais hostis nas minhas viagens para a cidade que eles moram no interior de São Paulo, isso se estendeu também para as redes sociais”, relata.

Seu tio enviou mensagens ameaçadoras pelo aplicativo Whatsapp sobre o que seria feito com os LGBTs no governo Bolsonaro, defendendo que  deveriam morrer junto com outros grupos que considerava ser “os inimigos”. Essa foi a gota d’água. San respondeu a mensagem afirmando que não manteria mais contato, bloqueou o casal nas redes sociais e não mantém contato com seus familiares desde então.

Assim como San, 79% das pessoas que sofreram violência online reagiram verbalmente/textualmente às violências sofridas nas redes sociais e 69% bloquearam o agressor após sofrer violência. Sendo que bissexuais e gays foram as categorias que mais reagiram verbalmente/textualmente após sofrer agressão ou ameaça (30%), seguida das lésbicas (27%) e pansexuais.

Segundo a jovem, a frase que mais ouviu nesse processo, dentro e fora da internet, foi  que “tudo isso ia acabar para os LGBTs”, em tom ameaçador. “Eu sofri ataque muito grande durante as eleições, sempre tocando na questão LGBT+ e ‘justificado’  por um [discurso de] caráter moralista”, explica.

Para o pesquisador Nejm, as pessoas se sentiram mais confortáveis em realizar ataques contra LGBTs publicamente na internet porque candidatos e personalidades públicas passaram a legitimar esse discurso da violência.  Os entrevistados da pesquisa tendem a concordar com a análise. Segundo o levantamento, 93% da amostra concordam totalmente com a afirmação de que o discurso promovido por candidaturas contrárias aos direitos das pessoas LGBT+ contribuiu para o aumento da violência direcionada a esta população nas redes sociais”.

Reações e medo

Depois de sofrer agressões e perseguições na internet,  Xande parou por um tempo de postar nas redes sociais publicamente, pensou em desativar o facebook e apagava sem responder as mensagens. Ele conta que chegou a ter uma crise de depressão e ficar sem sair de casa por um mês com medo da violência.

Segundo a pesquisa, assim como Xande, 21% dos entrevistados declararam ter receio ou muito receio de expor a opinião política nas redes sociais por ser LGBT+. 31% disseram ter “um pouco de medo ou receio”. Da sigla, os que mais registraram esse medo foram as pessoas bissexuais (40%), seguidas de homens gays (30%). As mulheres lésbicas (23%),  pansexuais (6%) e outras orientações sexuais(1%) foram a que menos registraram esse receio.

San faz parte da parcela de bissexuais que relatou esse medo. Ela revela que em outra situação de perseguição passou 24 horas recebendo mensagens ameaçadoras por causa de um comentário que fez em uma página discordando da violência e do que considera desumanidade contra essas pautas.Relata que o medo fez com que arquivasse diversas postagens depois das eleições e passasse a ter muito mais cuidado com o que publica na internet. “Me sinto retraída”, desabafa.

Para Sejm, a internet e as redes sociais representam uma ambiguidade, em que uma mesma ferramenta é usada para defesa de direitos e para se cometer violência. “A internet como rede de pessoas reflete a sociedade que temos, por isso quebrar o espelho não resolveria  o problema da imagem refletida. A gente vê na internet o reflexo de contradições e polaridades que vemos na sociedade.”

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

**a identidade dos entrevistados foi preservada

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