Quando se analisa os tipos de violência relatadas, a verbal foi a mais presente, seguida de tratamento discriminatório, de assédio moral e da violência física
Por Vitória Régia da Silva*
Aquele 28 de outubro de 2018, dia do segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, foi determinante para mudanças no comportamento social de Paulo**, um homem gay de 27 anos. Ele saía da sua seção eleitoral, em Salvador, quando levou um tapa na nuca, ato conhecido como “pescoção” na Bahia. Ao virar para ver quem o agrediu, identificou um grupo de homens reunidos com adesivos e panfletos do então candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL). Eles bradavam em tom de ameaça: “aproveita enquanto não virou o ano, que vai ser diferente”. Seguiam afirmando que haveria uma “limpeza” social.
“Me senti muito vulnerável e desamparado, tive medo de sair na rua novamente. Aquelas recomendações que fazemos às crianças voltaram a valer para mim, como não falar com estranhos e não ficar até tarde sozinho na rua”, disse o jovem, que mudou seus hábitos desde a eleição de Jair Bolsonaro. O medo também fez com que ele não fizesse denúncias em qualquer delegacia ou órgão da Justiça.
Paulo é um dos LGBTs que relatam terem sofrido violência durante o período eleitoral. Segundo a pesquisa “Violência contra LGBT+ no contexto eleitoral e pós eleitoral”, produzida pela Gênero e Número, 51% dos entrevistados sofreram pelo menos uma agressão durante o segundo semestre de 2018 e 87% relatam ter tomado conhecimento de violências cometidas contra conhecido/a LGBT+ ou pessoa próxima LGBT+ no mesmo período. A decisão de P.M de não levar denúncia a orgãos de justiça também não faz dele um caso isolado. Somente 3% das pessoas entrevistadas que sofreram violências disseram ter feito boletim de ocorrência após o ocorrido.
Quando se observa cada letra da sigla LGBT+, as mulheres lésbicas, de acordo com a pesquisa, foram um dos grupos que mais declararam ter sofrido violência (57%), seguidas das pessoas trans e travestis (56%), gays (49%) e pessoas bissexuais (44,5%).
“Se formos comparar aos dados da pesquisa com pesquisas anteriores de violência contra LGBT+, cerca de 51% dos LGBT+ entrevistados dizerem que sofreram discriminação e violência durante um curto tempo é um número muito alto”, analisa Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e professora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNICAMP à Gênero e Número. “Os poucos dados de pesquisa sobre violência contra LGBT+ já sinalizam um crescimento significativo nos últimos anos. Os dados dessa pesquisa não falam de um aumento de um dia para o outro e nem um fenômeno pontual da eleição, é um fenômeno que vem encontrando um processo de crescimento e que aparece em um estado muito agudo durante o período eleitoral”, pontua a pesquisadora.
Quando se analisa os tipos de violência sofridas, segundo a pesquisa, a violência verbal foi a mais presente (94%), seguida de tratamento discriminatório (56%), do assédio moral (54%), da violência física (13%) e de outras formas de violência (13%). Na pesquisa foi possível identificar mais de uma violência, por isso a somatória não é de 100%. Para Facchini, que já realizou diversas pesquisas sobre violência contra LGBT+, os dados mostram um aumento muito significativo de todos os tipos de violência, principalmente a violência verbal. “Os números mostram que tem muita gente fazendo ameaças de violência ou agredindo verbalmente”, disse a pesquisadora.
Desconhecidos e partidos políticos são os maiores agressores de violência contra LGBT+ no período
“Bolsonaro vem aí!” e “Viado não vai poder ficar andando na rua assim não” são frases que Yago Bruno Santos de Souza ouviu diversas vezes durante as eleições de 2018. No ponto de ônibus, quando andava na rua e até mesmo na Feira de São Joaquim, frequentada por pessoas de religiões afro brasileiras. O jovem baiano negro de 21 anos, que se identifica como gay e queer, sofreu diversas vezes com violência verbal e ameaças. Em uma delas, quando estava no conhecido bairro da Barra, em Salvador, e andava a noite com amigos da faculdade de um bar para outro recebeu ofensas de dois ciclistas que passaram gritando e fazendo referência a Bolsonaro. Desta vez Yago e o grupo reagiram, mesmo temendo retaliação.
O grupo foi alvo de desconhecidos. Eles estão no topo da lista dos autores de agressões contra LGBT+ durante o período eleitoral e pós eleitoral – 87% de todas as agressões nesse período contra LGBT+ foram de desconhecidos; 44% de pessoas ligadas a partidos ou grupos políticos e 34% de familiares e parentes – segundo a pesquisa da Gênero e Número.
“O período eleitoral é um dos piores momentos [para violência], porque se compete na esfera pública para se ganhar as eleições e o discurso de ódio foi muito utilizado como capital político. No momento da eleição, o ódio é utilizado para ganhar votos, fora desse período as pessoas não precisam angariar votos, mas apoio para determinadas políticas e quando é discutida pauta de costumes, então ele pode voltar de diversas maneiras”, disse a cientista política e pesquisadora San Romanelli Assumpção à Gênero e Número.
“Quando se vê a discussão de políticas afirmativas ou de defesa a Escola sem Partido, por exemplo, esse ódio volta. Como temos uma agenda conservadora muito forte, ela reativa ódio sempre”, pontua Assumpção.
Para a pesquisadora Facchini, não deve se perder de vista a entrada de dois atores: as pessoas religiosas e grupos políticos e partidários, para analisar a violência. “Essa piora nas situações de violência não pode ser dissociada das mudanças que temos visto no nosso país, do crescimento da manifestação pública de discursos agressivos em relação a LGBT+ baseados no fundamentalismo religioso que passa a se expressar mais fortemente e também nas posições políticos partidárias associadas a falar publicamente ou fazer críticas públicas a questão da homossexualidade ou das pessoas serem LGBT+”, destaca. Segundo a pesquisa, grupos religiosos representam 10% dos agressores desse período.
Crescimento da violência nas relações interpessoais
No contexto das discussões da Escola sem Partido e do suposto “kit gay” – que embora desmentido foi bastante propagado pelo presidente Bolsonaro durante sua campanha – a escritora e professora Paloma Franca Amorim, de 32 anos, lésbica e indígena, foi ameaçada durante o período eleitoral dentro do seu ambiente de trabalho, a sala de aula, em São Paulo. No final do ano passado, quando dava aula em Teoria Crítica da Arte no Senac, um aluno que sabia da sua orientação sexual trancou a sala de aula durante o intervalo da aula e passou a dizer que “sabia da sua doutrinação e o que ela estava tentando fazer”, em uma postura descrita pela vítima como ameaçadora. As ameaças se estenderam para além desse episódio, e o aluno a xingou publicamente nos corredores da instituição.
Em uma outra ocasião, Paloma teve uma experiência de violência coletiva, junto com o grupo de samba do qual faz parte, a Sambada, que reúne mulheres lésbicas, bissexuais e trans no Largo da Batata quinzenalmente. Elas sofreram vários casos de assédio e violência verbal. Num dos relatados pela professora, um homem desconhecido chegou à roda e bradou que elas “elas deveriam ter medo do que estavam fazendo”. Depois da ameaça, o grupo de mulheres fez reuniões de segurança e discutiu formas de se proteger. As ruas ou espaços públicos (83%) e comércio ou serviço público (46%) foram os locais de agressão mais registrados pela pesquisa.
Mesmo com a vulnerabilidade que a rua oferece a quem está em eventos abertos como rodas de samba citadas por Paloma, os ambientes familiares (38,5%), o mercado de trabalho (23%), a escola/universidade (19%) e os espaços religiosos (12%) foram locais de agressão e violência contra LGBT+ notificados pela pesquisa que chamaram a atenção da pesquisadora Regina Facchini. Em pesquisas anteriores que realizou esses dados chegavam a ser oito vezes menor.
“Guardadas as diferenças metodológicas de pesquisas anteriores, vemos um aumento de situações de agressão no ambiente de trabalho, na escola/faculdade e âmbito da família. Isso fala de um aumento das agressões nas relações interpessoais, com pessoas conhecidas”, pontua Facchin. “É mais grave para o cotidiano das pessoas que elas sejam agredidas por pessoas que estão no seu dia a dia.”
“Esse tipo de violência tem um efeito muito sério, pois se ela se dá no meio das relações cotidianas, você ser agredido verbalmente por alguém com quem convive todos os dias tem um impacto muito forte na vida e saúde mental dos LGBT+. Isso é diferente de um desconhecido te agredir na rua porque ele vai embora. Nas relações cotidianas, você vai ter que continuar convivendo com o agressor e a agressão pode se repetir”, analisou a pesquisadora.
Para a cientista social, que atua nas áreas de democracia, direitos humanos e justiça, muita coisa “aparenta ser mais permitida” nesse momento e as pessoas se dão ao direito de dizer abertamente coisas que não diziam antes, como insultos racistas e homofóbicos. “Criamos uma espécie de “autorização” para que coisas preconceituosos sejam ditas muito claramente em espaços não homogêneos. O ódio está na forma de preconceito permanentemente, não vai diminuir, e isso autoriza coisas, como sair do âmbito do preconceito e partir para a ação.”
*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número.
**a identidade do entrevistado foi preservada